Texts and Other Curiosities

Published texts

Pais e Filhos

Short stories

Arquivo de ideias que me cutucaram livremente. Algumas estão bem resolvidas, outras continuam abertas.

Deus Me Ajude (09/25)

Hoje é na base do Deus me ajude. Me ajude a acordar, a levantar e a esquecer. Me ajude a afastar o álcool da cabeça pesada e o gosto de ontem. Me ajude a colocar um pé na frente do outro e andar como se fosse normal. Deus me ajude a limpar o corpo, porque a alma deve ter sido esterilizada à noite. Deus me ajude recuperar o corpinho que me pertence. Não preciso me lembrar de nada não, podemos começar do zero – mas sem avarias. Deus me ajude a olhar para as pessoas e lembrar que um rostinho bonito pode esconder um monstrinho horroroso e que aquela tosqueira pode ter um coração florido como um ipê. Por que as pessoas não são o que aparentam ? Animais e plantas também têm disfarces, mas eles agem por instinto, a gente age por maldade ou ganância. Deus me ajude ao menos a tomar um banho frio e calçar os sapatos para atravessar esse dia. Aiai, Esperança, não fosse tu, eu não estaria aqui me lamentando. Teria aceitado os fatos ou estaria tocando harpa com os anjos. Deus me ajude com uma dose forte de ignorância, por favor, e tudo será como antes.

Artur e Suzana 2025 (WIP)

E assim começa mais um dia, remelento, com sono e coçando o ventre, Artur erra o pé no chinelo direito. Depois ainda era o esquerdo que se prende atravessado. Anda mal equilibrado ao banheiro onde lava o rosto e desiste da barba, os chinelos perdidos no caminho. A cara lavada não melhora seu aspecto nem seu humor. Três biscoitos cream craker com margarina e um café fraco, mete o jeans por cima da cueca frouxa que vestia, uma camiseta branca sofre pra cobrir sua barriga e vai gastar um pouco mais seus chinelos na rua. Três passos e o primeiro já voa na direção de um cão. “Vá fazer esta merda do outro lado, desgraça!” “No meio da rua nunca fazem, é sempre na calçada que a gente passa.” Já entrou no supermercado reclamando do preço do cigarro: “se não querem que a gente se mate que ofereçam um mundo melhor, deixar o cigarro mais caro vai me matar é de fome!”, saiu com arroz, ovo e tomate pra passar a semana, doritos e cerveja para melhorar o humor, hoje é dia de encontrar Suzana.

Suzana é sorriso, é ginga, é molejo de cintura. Suzana é vira-pescoço, é mira de assobio, e Medusa. Ela paralisa os mais saidinhos no olhar, tem sempre uma faca na bolsa, é faixa preta de Muay Thai e professora de Kung-fu. É mais fácil sorrir na rua quando a mulher se garante. Suzana é duas metades que andam em alternância a passo de samba. Direita e esquerda se revezam hipnóticas como balanço de rede. Desejada e invejada leva sal grosso consigo, ou seja, um assanhado mais ousado pode virar um churrasco completo, cortado, amassado e salgado. Uma mão mais ousada ela segura firme e pergunta à orelha gentilmente torcendo o dedo da mão ousada: “Quanto você tem aí, querido! Pode olhar, mas tocou tem que pagar”. Já fraturou alguns e já faturou um bocado, mas pra cama não vai por dinheiro. Vai por sede! Tem gente que não se segura, né Suzana? Fatura alto. Dispensa alto. Dela é o momento e a generosidade. A mãe é envolvida no desenvolvimento do bairro. Suzana ajuda, patrocina e não quer sair daí. Vida de rico pra quê? Poder já tem.

Artur e Suzana, mão na mão. Casal improvável, complementar. Ele tem a melhor, ela tem o ogro com potencial de príncipe! Um ogro correto. Meia barba feita, a preguiça faz estilo. De calça e chinelo, novamente estilo na preguiça. Fechou a porta mas abriu pra entrar de novo. Suzana gosta da regata branca, mas em lugares despovoados, nè? Passar perto de suvaco cabeludo, ninguém merece. Pelos são ameaçadores. A camiseta foi por cima mesmo.

Essas ruas irregulares desequilibram o caminhar. Atenção aos idosos e crianças. Os movimentos das pessoas são muito mais interessantes que em ruas bem cuidadas. Aqui só consegue manter a classe quem realmente a tem. Olha os moleques no futebol, quem joga bem aqui na rua arrasa em qualquer gramado. Aqui o “campo” é adversário colado ao pé. Artur avança devagar. A pressa é inimiga da perfeição, mas Artur não pensa nisso, ele é apenas lento, e lentidão também é inimiga da perfeição. Pouco importa com uma cerveja na mão. Filosofia chata, tem gente que quer estar sempre a pensar. Artur anda de cabeça limpa, vazia, com o coração cheio. A bola vem a seu pé e ele dá o drible da vaca no garoto que veio atrás dela passando na medida pro outro em direção ao gol. “Ela vem pra quem entende” manda ele sorrindo, todo seguro de si enquanto os garotos começam a discutir veementes sobre a validade ou não interferência externa no jogo. “Se você quer ser craque tem que estar preparado para qualquer adversidade e jogar sem discutir”. Isso disse Artur, com chatice de treinador, voltando para apaziguar os garotos.” Bota esta bala no chão que vou jogar também! Eu contra rapa!”. Perdeu o fôlego e a partida. 3×0. Revestiu a camiseta e seguiu caminho rumo a cerveja e Suzana, a melhor combinação de prazeres que ele pode imaginar.

Apesar da velocidade abaixo da média, quando o encontro é no bar Artur é o primeiro a chegar. Como bebe devagar também, nunca bebe demais. Seu humor é constante, divertido e relaxado. Suzana gosta de bares, pura vitamina para sua auto estima. Artur não sabe porque ele é o escolhido, mas não é besta de perguntar, segue o jogo! Cerveja quente é como café frio, poucos gostam e ainda menos o admitem. Artur não se importa com nenhuma nem outro. Ele mesmo é uma pessoa morna a maior parte do tempo, o que não o impede de ser quente ou frio em situações fora de rotina, onde o instinto animal de sobrevivência se impõe às boas maneiras do homem civilizado. Exceção concedida apenas a alguns monges budistas do Tibet.

Hoje tem jogo e o boteco está agitado. Interjeições e palavrões estão tão presentes que quase se pode tocá-los. Passeiam pelo bar como como cachorro na calçada, discretos mas presentes, Apenas não bebem, mas estão lá. A mesma expressão é ora raiva e injúria, ora é orgulho e êxtase, menos para para o juiz, que só recebe o ódio alcoolizado dos dois times. Ele é o ponto de união dos torcedores. Como Suzana que aponta na esquina.

Botecos são estrategicamente posicionados para se observar as ruas, como guaritas. Qualquer um que se aproxime é avistado de longe, com tempo para se preparar a recepção apropriada. Um bom cachaceiro já tem seu copo servido e seu lugar pronto quando entra. O chato é recebido meio de costas e ignorado o maior tempo possível. Ele mesmo nem percebe e se introduz nas rodas em poucos segundos, se percebesse não seria chato. É a dinâmica geral do boteco, dinâmica fervente que acolhe tantas diferenças em sua atmosfera única. Todos os estereótipos estão sujeitos a esta recepção singular. Na maioria das vezes se passa de maneira harmoniosa com os habitués, mas quando uma esposa é avistada a tensão geral sobe e a adrenalina revigora o teor sanguíneo no álcool dos maridos botequeiros, afinal as esposas formam uma rede sólida, ágil e até solidária, de informações. Se as mulheres não estivessem tão preocupadas com seus próprios problemas individuais dominariam o mundo. Pegue-se como exemplo um salão de beleza, que é o equivalente feminino do boteco. Opiniões são compartilhadas, mas cada mulher está concentrada na sua própria beleza e problemas individuais. No boteco, o álcool é compartilhado e o menor problema que se tenta resolver é a escalação da seleção brasileira de futebol. Homens costumam discutir soluções para problemas mundiais quando não está passando futebol na TV. Um dos rarissíssimos eventos capazes de desviar a atenção de cervejeiros do futebol está se passando agora ali fora. Um eclipse se aproxima. Harmoniosamente bocas se calam abertas, palavrões se dissipam como as brumas da manhã e uma brisa refresca a atmosfera enquanto olhares progressivamente convergem abduzidos para o exterior. Furacões, não à toa, tem nomes femininos. O eclipse aqui tem também o corpo e a sensualidade de Suzana. Cada passo seu é uma nota de samba com a elegância do ballet. Seus pés ignoram a calçada irregular como se estivessem numa passarela de Paris. Ah, A beleza exótica das misturas! Arroz com feijão, queijo com goiabada e o branco com negro da mulata. A pureza em si não tem vida, não tem alma. Diamante? Ouro? São belos e valiosos, mas só. Misturados se tornam uma jóia. 

Todas as atenções se concentram e nesse momento só há Suzana. A atenção de todos. 100% de Domínio sob a masculinidade. Ela vive pra isso. Agora é só olhar para qualquer um e pedir. E ela terá. E o escolhido será admirado pelo grupo. As mulheres poderiam dominar o mundo assim. Suzana sabe e curte esse momento como se curte a primeira cerveja gelada do verão, cada papila, cada nervo, interagindo com a bebida e contribuindo para o êxtase do momento.

Mas, um grito interrompe o processo. Um grito seco com efeito instantâneo corta a magia do eclipse como se acendesse a luz do cinema. E o último olhar que se vira para a TV é de Artur, não se sabe se por sua lentidão habitual ou paixão por Suzana.

Gol! Um grito de gol ainda ganha de Suzana. Ela já venceu o futebol, foi gol e ninguém aqui notou. Não fosse o grito do vizinho, um gol teria passado em branco no bar. Quem ousa fazer gol em momento de Suzana? “Todo momento é meu, querido, não se preocupe”, diria ela frente ao espelho.

To be continued…

Hans e eu (09/25)

Hans abre a janela e o vento quase fresco renova o oxigênio da sala. As luzes dos prédios alfinetam a penumbra do fim da tarde como estrelas que invadiram a atmosfera. Dezenas de metros abaixo, carros, motos e bicicletas acrescentam pontos luminosos harmônicos como formigas luminescentes. Todos parecem ter um objetivo menos o pobre Hans, que olha fixo para lugar nenhum. As luzes se misturam todas, fora de foco. Dançam pra mim as fadas do sono eterno, finalmente paz. Paz no caos imperceptível à distância. O caos só existe na distância apropriada, de muito longe ou de muito perto ele se mostra uma imagem harmônica, mágica. Essa vida estragada não se vê lá embaixo. Quantas destas luzes dirigem pessoas perdidas? Ele acende o isqueiro para buscar seu caminho. Insere-se com sua luz no belo fim de tarde. Quanta beleza inútil para uma alma apagada. O corpo jovem ainda viverá bons anos. Mas a alma já foi. Um corpo sozinho, que tem fome, sede e sono. Como se desliga essa merda quando a gente não quer mais? Apenas observo de dentro. Cansei de viver, onde ele vai e o que ele faz não são mais problema meu. Ele come, bebe, deita e dorme. Conversa assuntos aleatórios, toca, olha, sente e esquece. Como plantas e animais, o corpo humano também se desenvolve sozinho. Pra quê me colocaram aqui dentro? O que se espera de mim? Por que eu? Estou cansado deste dorme acorda vai aqui vai lá! Agora só observo essa coisa nojenta que sou, bonitinho ordinário. E se eu fosse um gato? Precisa ser uma alma filha da puta pra habitar um gato ou é apenas coincidência não ter um único gato decente? O problema de estar aqui é não poder sair antes do fim. Podia ter no guarda-roupas umas opções extras de corpo. Hoje eu ia sair de gato! Rasgar o sofá, unhar uma perna macia, subir na mesa, derrubar um ou dois vasos, zuar o papel higiênico e voltar pra cama com cara de “Foi de propósito mesmo, por quê?”. No teatro da escola já fui árvore. Sem comentários. Vai Hans, salta! Hans é esse corpo saudável que não me interessa mais. Como é resistente este trem! O movimento das luzes continua belo, hein? E este barulho abafado da cidade. Barulho de vida dos outros. Zumbido de abelhas incansáveis. Para onde vai tanta gente nesta colméia humana?

Quem fala? (2025)

As pessoas andam tão estranhas que ela não se incomodou com o fone na orelha dele durante o encontro. Também não estranhou as pausas nem os lampejos de introspecção. Teve empatia pelas dificuldades e quis pegar a sua mão e acolher. Às vezes ele falava algo desconexo, mas na maioria das vezes era sensato e inteligente. E muito romântico nas palavras, embora nem sempre no tom. Nossa geração só conversa por chats e memes, pensou, não entende toque, cheiro e gosto. As emoções não acompanham o corpo e duram apenas alguns segundos até se neutralizarem a espera do próximo estímulo. As palavras dele continuavam boas, apesar de pouco evoluírem em intensidade e individualidade, e a conversa se desenvolveu ativa durante todo o jantar.
Ele é sensível, dizia-se ela, gosta de gatos e sabe cuidar das plantas. Entende de astronomia mas acompanha o esporte e conhece filosofia. Citou Shakespeare, não que eu goste, mas ele conhece e pode citar. Foi um jantar meio estranho com palavras românticas e olhares perdidos, menos perdidos quando se dirigiam a seus seios ou seus lábios, mas ela optou por deixar esse pequeno incômodo de lado e focar nas palavras mesmo. Ela não tinha a menor intenção de ir pra casa com ele, até porque estava num daqueles dias mais complicados, qualquer insistência seria em vão. Seguiu-se assim o jantar, agradável ao ego e ao paladar. Já na saída na frente do restaurante, ela se despedindo e ele nem tanto, seu toque revelou-se mais rude que suas palavras, provavelmente pela falta de experiência física, aprendido mais através de visualizações em redes sociais que com pessoas reais. Ele insistia, meio sem jeito diga-se, e ela o abraçou longamente. Sorriu. Com seu rosto colado no dele e a percepção de tempo dilatada pelo toque de outra pele, ela ouvia ainda as palavras doces e sua voz ecoando ao longe. Era isso mesmo, sua voz ecoava, enquanto as palavras em si estavam num volume bem mais baixo e pareciam saídas de uma lata. Lembrava aqueles brinquedos dos anos 80 que seu professor de física tinha mostrado numa aula de acústica. Duas latas ligadas por um fio esticado, reproduzindo uma o som da outra. Pausa. A realidade se mostra e os pontos se encaixam: as palavras independentes da expressão, os momentos de dúvida, as frases sem sentido, o toque desorientado e o desejo áspero. Aquele ser que tinha lhe acompanhado esta noite não falava por si. Tão inseguro era que repetia palavras que o aplicativo de inteligência artificial soprava em sua orelha.
Atônita, demorou a reagir. Soltou-se lenta gentilmente do abraço, olhou no fundo dos olhos dele e permitiu-se sorrir. Sorriu e não mais parou. Riu, gargalhou. Reviu cada momento da noite e se divertiu como há muito não fazia. “Boa noite, Ricardo”, disse por fim, acariciando seu cabelo e beijando-lhe carinhosamente o rosto. Acrescentou no seu ouvido, tirando-lhe delicadamente o fone “adorei a noite que passei com vocês”. Entregando-lhe o fone, voltou a rir muito, leve e feliz, entrando no táxi. Deu o endereço do destino, que não era o da sua casa e, divertindo-se, deixou-se levar. Uma noite insólita não pode simplesmente terminar assim.

Em sã consciência (2025)

Foi assim, como se fosse uma manhã qualquer, que ele acordou, abriu os olhos e se espreguiçou. Colocou os pés no chão, primeiro o pé direito. Ou não? Eita, ele não tinha mais pés… Nem braços, nem corpo. Oba!, não vai trabalhar! Ainda bem. Mas então pra onde vai? Droga, sem boca também não se come! Merda, o que a gente faz quando não passa de uma consciência? Outros, irão cumprimentá-lo como a um adolescente recém-chegado ao ensino médio ou um novato no trabalho. Novatos são sempre recebidos com zombarias. Ainda assim, ele anda até a porta, se é que se pode chamar este deslocamento de andar. Ele está preso, claro, como abrir uma porta sem as mãos? Merda. está preso em casa. E ele mora sozinho, é velho, não tem força e muito menos inteligência. Não está cansado e também não consegue dormir. Por que fechou a porta? Sua consciência está vedada em seu quarto limitada por seis paredes sólidas e uma janela fechada, como ele sempre esteve. A sociedade mata a criatividade. Felizmente. Criar dá trabalho e na maioria das vezes as criações não funcionam como planejado e é preciso criar ainda mais para adaptar o resultado da criação ao objetivo. Ele não tem nada para fazer, e não tem muito para imaginar. Seu cérebro não é acostumado à imaginação. Ele gosta de TV, mas não tem televisão no quarto. Que pena, mas pensando bem ele também não saberia ligá-la sem seus dedos. Ele espreita a porta. Para quê? Não há ninguém por perto. Mas eis que a porta se abre e ele, sem perder tempo, se lança para fora sem nem mesmo notar o delinquente que a abriu. Mas não hà mais portas abertas. Já não está no quarto, mas ainda está preso. Senta-se como pode perto da porta de entrada, considerada agora porta de saída. Espera. Mas a espera se alonga e uma pergunta saltitante brinca naquele canto vazio de sua mente dedicado às ideias. Quem abriu a porta e para quê? Shhh. Concentra na saída. Mas, o mesmo tempo que cura feridas intensifica inquietudes, e a pergunta, como uma criança, o vence pela insistência. Ele volta para seu quarto, num timing perfeito: Assim que ele entra a pessoa sai, fechando novamante a porta atrás de si. Merda. Sua consciência está tão presa quanto ele estava. Talvez mais, porque ele era feliz.

Travel

Projeto 1000m (1999)

Bike tour Swiss1 (soon)

Media

MIT TV (2013)

Saia Justa – GNT (2015)

Making of Bradesco 70 anos